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Primeiro presidente da AVTSM fala ao Diário sobre lembranças e expectativa para o julgamento

Gabriela Perufo e Jaiana Garcia

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Foto: Pedro Piegas (Diário)/

Com 8 anos de idade, Adherbal Alves Ferreira, caçula de seis filhos, mudou-se de Candelária para Santa Maria com a família. Filho de pais fotógrafos - o pai ensinou a mãe, que acabou repassando o conhecimento ao filho - considera-se santa-mariense. Hoje empresário, com 57 anos de idade,  responsável por uma loja que começou como papelaria e é especializada em móveis de escritório, ele é pai de dois filhos: Jonathan e Jeneffer.

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Jeneffer, aos 22 anos, foi uma das 242 vítimas da Kiss. Na época do incêndio, ela estudava Psicologia na UFSM e era braço direito dele no trabalho. Pouco após a tragédia, Adherbal acabou fazendo coisas que "nem imaginava", como ele mesmo conta. Virou o primeiro presidente a partir da fundação da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), cargo que ocupou durante dois anos, de 2013 a 2015.

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Foi nesse período que ele buscou a união das diferentes famílias, que tinham o luto em comum, como uma rede de apoio. Viajou e conheceu personagens de outros dois incêndios trágicos como o da Kiss, um na Argentina e outro nos Estados Unidos. Estudou leis, participou de debates sobre regras que poderiam exigir mais segurança dos locais, organizou homenagens, vigílias e cultos em memória das vítimas nas mais diferentes religiões. Foi acusado de usar o cargo por interesse político e, após dois anos, deixou o posto.

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Na época, quem via Adherbal em alguma ocasião, sabia quem era ele: se não o reconhecesse pela própria fisionomia, a foto da filha, diariamente pregada ao lado esquerdo da camisa, era o cartão de visitas. A fotografia, prática que marca a vida de Adherbal desde a infância, foi uma das formas de perpetuar a memória de Jeneffer, que hoje teria 31 anos de idade. 

O empresário relembra suas experiências nestes quase nove anos desde a tragédia, e também desabafa sobre o júri, marcado para começar nesta quarta-feira. Ele pretende acompanhar o desdobramento - parte presencial e parte de Santa Maria - e anseia por justiça, mas teme que ela ainda não chegue. Hoje, se considera uma pessoa "que acha uma desculpa no trabalho". Evita ir a festas ou reuniões, exceto compromissos do serviço.

Diário - Antes,  o senhor era o Adherbal, um empresário que cuidava da loja. Depois da tragédia, o senhor passou a ser conhecido como o pai da Jeneffer, uma das vítimas. Como foi viver tudo isso e o que mudou na sua vida?

Adherbal - Mudou muito a minha vida. Sempre fui conhecido como um profissional da minha área, e após isso, por incrível que pareça, minha parte comercial ficou bastante atrapalhada. Havia pessoas que concordavam com a gente (familiares da AVTSM), entendiam, mas tinha aqueles que rejeitavam, aí ficou difícil. Mas enquanto houve a associação, nunca fiz tantas viagens, compromissos e reuniões como naquele período em que fui presidente. Tinha colegas próximos, uns mais distantes, mas era um grupo grande que conseguíamos juntar nas reuniões e nas homenagens dos dias 27. O primeiro 27 posei na praça, a gente ficou em homenagem, e aquilo ali acabou se tornando um início das vigílias, que acabaram continuando. Também criamos o minuto do barulho, com palmas, até que dessas homenagens surgiu a tenda na Praça Saldanha Marinho. Mas foi um período muito agitado na minha vida, eu não conseguia ser presidente da associação e cuidar do meu negócio. Eram viagens, a questão judicial. Havia pessoas que diziam que eu queria ser político, houve fofocas demais, sofri bastante. A gente também enfrentou muita dificuldade, a negação das pessoas, que diziam que tínhamos que parar, mas eles não entendiam que tínhamos um objetivo: que a justiça fosse feita. Quem falava isso não sabia que, na verdade, desejávamos nunca ter passado por isso. Depois de dois anos, resolvi sair. Fiz coisas que nunca imaginei, como andar de avião. Foram mais de 30 vezes. Também nunca tinha pensando em sair do país, e acabei indo aos Estados Unidos. Também fiz viagens ao Ministério da Saúde, para pedir auxílio para tratamento dos sobreviventes. Depois, ao Ministério da Justiça, buscar amparo, porque naquela época já tínhamos medo dos rumos do processo. 

Diário - Passados dois anos da associação, o senhor saiu da presidência e passou a acompanhar todos os desdobramentos? 
Adherbal - Eu fiquei um pouco afastado para poder digerir, porque foi muito intenso o período em que fui presidente, fizemos muitas homenagens, tentávamos não ter política no meio e nem uma só religião, por isso a gente organizava ora cultos, ora missas, diversificava para atender a todos. Hoje, acompanho um pouco mais de longe, mas agora, com mais intensidade, já que o júri está chegando, algo que tanto queríamos. Mas nunca deixei de acompanhar e saber o que estavam fazendo. A parte mais pesada, lógico, agora coube mais ao Flávio (Silva, presidente da AVTSM) que está à frente de tudo.

Diário - O senhor pretende acompanhar o júri de alguma forma? 
Adherbal - Pretendo. Estou tentando ver um dia que eu tenha disponibilidade de poder ir até lá, mas ainda não sei como vai ser, como o "meu eu" vai estar na ocasião, porque é complicado chegar lá e ouvir o que não quer, e ao mesmo tempo não pode se manifestar. Será uma coisa complicada, não sei como eu agiria. Aquela vez que fui no Tribunal de Justiça, quando liberaram os réus, foi complicado, aquilo me levou a um estado emocional pesado. Uns dias após soltarem os réus, fui ao Tribunal e tentei cobrar dos desembargadores, não sei como tive coragem, mas fui lá e consegui conversar para saber por que fizeram aquilo. Hoje, a gente sabe, que sempre existe alguma coisa, um detalhe que pode livrar alguém na Justiça, mas pretendo ir um dia sim, até lá, tentar ver de perto. Não sei se um dia, dois dias, por causa do meu trabalho. 

Diário - E os outros dias, de longe, pretende acompanhar?
Adherbal - Sim, eu vou acompanhar, na medida do possível, porque faço parte disso e também lutei por isso, para que acontecesse esse tão esperado júri. Vou fazer todo o possível participar, seja lá ou aqui.

Diário - O senhor está pronto para qualquer desfecho, qualquer sentença? 
Adherbal -
 É difícil responder isso, mas sinto que vamos ter surpresa, talvez nem tão favorável, como a gente já imaginava. Muitos saíram fora (do processo), e permanecem esses quatro (réus), a gente sabe que entre eles as culpabilidades são diferentes, mas existe a responsabilidade. Não sei se vai ficar a contento. Sobre aguentar firme, no osso do peito, isso aí eu não sei responder ainda, mas todos nós, os pais, gostaríamos de ver a justiça formalizada. Pode ter abrandamento, temos que estar preparados para isso. Eu, como cristão e com a minha fé, estou me preparando, porque sei que também há outra justiça, diferente da dos homens. 

Diário - Na sua opinião, o senhor acha que teriam que ter mais pessoas no banco dos réus?
Adherbal - Dentro de cada culpabilidade, sim, proporcional ao que fizeram. Teve mais pessoas com culpa, sim, dentro de desleixos de pessoas que deixaram de fazer coisas e que acabou acontecendo a tragédia. Muita gente ganhou com isso. Os principais estão lá, os quatro que de fato fizeram acontecer o incêndio, que sabiam que tinham algo inflamável, que algo poderia ter acontecido, mas teve mais gente que fez ou deixou de fazer coisas que contribuíram para essa tragédia.

Diário - O senhor acredita que o júri tinha que ser em Santa Maria?
Adherbal - 
Bem no começo, logo depois do incêndio, nos falavam que tínhamos de parar de organizar passeatas, porque poderia houver desaforamento. E no fim, houve o tal do desaforamento. Eu acho que teria que ser aqui, foi aqui a tragédia, as marcas estão aqui, o prédio está preservado para que isso fosse possível, existem muitas coisas presentes nesta cidade. Mas eles alegam que as pessoas de Santa Maria estão todas envolvidas e não poderiam ser jurados. Mas então, por que não trazem os mesmos jurados de fora para cá? Eles viriam durante o júri, ninguém sabe quem são eles mesmo, e eles ficariam na cidade durante esse tempo. Muitas famílias não vão conseguir ir até Porto Alegre, é complicado, é muito tempo, muita despesa. Se fosse em Santa Maria, todos estariam presentes. 

Diário - Pouco depois da tragédia, o senhor matinha o quarto da sua filha e o visitava diariamente. Esse ritual permanece? Tem outra forma de manter a presença da Jeneffer em casa?
Adherbal -
 Sim, o quarto dela está preservado. Algumas coisas a gente deu, mas essa emoção continua: todos dias eu olho o quarto dela. A gatinha que ela tinha, que ela me trouxe, vive até hoje. Essa mesma gatinha fica dentro de casa, assim como as outras gatinhas que ela tinha, que sempre entravam em casa e iam direto para o quarto dela, como se sentissem saudade. Eu não tive coragem de desmanchar o quarto dela, é um santuário pra mim. Às vezes entro, às vezes fico sentado na cama, vazia, mas tudo ainda é muito presente, uma dor que não se apaga. Eu acordava ela todas manhãs, ela saía comigo para o trabalho e depois ia para a faculdade. Até hoje, eu mantenho o meu ritual de olhar, de imaginar ela aqui. Às vezes, durante à noite, eu levanto e olho, deixo a porta aberta para imaginar ela lá dentro e lembrar quando eu ficava no escritório e ela ficava conversando comigo, tem vezes que eu imagino essa conversa. E eu acredito que ela ainda está presente. São três gatas dela que ainda moram com a família: a Preta, a Bebel e a Betina. A Betina até hoje faz uma festa quando me vê. Lembro que a Jeneffer estava na escola, há uns 15 anos. Ela me ligou e disse "pai, vem me buscar que eu tenho um presente". Fui buscá-la, e ela estava com uma caixa de sapato, com a gata, bem pequenininha dentro. Na hora perguntei o que faríamos, e ela disse "vamos levar para casa, é um presente". Levamos ela para casa. Foi a primeira, depois vieram os outros gatos. 

Diário - O senhor tem a lembrança dela quando criança?
Adherbal - Volta e meia eu sonho com ela, até esses dias sonhei com ela e ela era criança no sonho, até postei essa história no Facebook, porque foi algo mágico. No sonho, passavam umas pessoas por um rio, e de repente passou uma pessoa pequena e parou na minha frente. Ela disse "oi, é a Jeneffer", e me abraçou. Eu senti o abraço físico dela, foi algo muito real. Fiquei bravo comigo mesmo por ter acordado, mas não esqueci desse sonho. Eu, como era fotógrafo, tirava muita fotos dela, e então eu lembro direitinho do sorriso, do jeitinho dela, ainda é muito presente. 

Diário - Em entrevistas antigas, quando a tragédia completou dois anos, o senhor achava que o processo estava demorado. O julgamento será na véspera de fechar nove anos. Agora, o que o senhor considera justiça? 
Adherbal
 - Não consigo vislumbrar isso, mas, como disse, eu temo abrandamento de algumas coisas nesse meio. Acho que pode não ter prisão, e eu não sei se vai ficar a contento de todos. Mas não tenho uma opinião formada agora, preciso de mais tempo para digerir essas hipóteses. Temo, também, que não haja justiça de fato, como teria que ser. Vão colocar muitas cartas na mesa, a defesa vai procurar humanizar bastante os réus. Eles tinham um pensamento, na época, de entupir centenas de pessoas em uma boate sem condições, e naquela época não pensaram nisso. Quando acenderam o fogo, também ninguém pensou. Só pensaram na ganância ou no dinheiro, em nada mais. Não só os réus. Eles podem até estar arrependidos hoje, mas na época fizeram essas coisas. São 242 mortes nas costas. Tenho certeza que nunca nenhum familiar pensou em atos vingativos. Logo no início, você fica perdido, não sabe para onde ir, é natural, ficamos revoltados. Mas isso, foi um ato feito e todos nós perdemos, e mexeu com milhares de pessoas. Essa justificativa tem que ser dada para sociedade, tem que haver uma resposta. Mas ainda não consigo expressar isso. 

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